Nunca quis ter irmão. Alguns parentes brincavam:
— Tem que vir um irmãozinho pra ter mais graça!
Minha resposta era sempre a mesma:
— Se minha mãe engravidar, eu fujo de casa.
Eu estava muito bem, obrigada, com a minha vida de filha única, que, por motivos que talvez virem texto algum outro dia, já era complicada o suficiente. E há, sim, um pouco de verdade na frase: “não se pode sentir falta do que não se tem.”
Com 10 anos, achei que esse já era um assunto mais do que superado. As piadas foram caindo em desuso, o tempo foi passando.
Um dia, meu pai chegou em casa com um papelzinho. Entrou na sala (minha mãe estava sentada, não tirava os olhos de mim), me chamou e disse:
— Filha, você pode ler o que está escrito nesse exame aqui pro pai?
E eu fui logo pegando a folha, querendo ser prestativa. Li meia dúzia de palavras que não entendi e fiquei olhando a folha. Percebi um silêncio meio denso e olhei para o meu pai, que abriu um sorriso acanhado.
— O que tá escrito, filha?
— Grávida.
Demorei mais uns três minutos.
— A mãe tá grávida?
Olhei confusa para todos os rostos, todos os cantos, todos os lados. Minha mãe fez que sim, já com os olhos marejados. Olhei novamente a folha na minha mão e comecei a chorar. Meu pai perguntou se eu estava feliz e eu assenti, antes de correr para abraçar minha mãe.
O dia em que soube da existência do meu irmão foi a primeira vez na vida que chorei de felicidade.
Os anos passaram mais um pouco, o tempo cobrou seu preço, a adolescência também — e recebemos o meu primeiro diagnóstico:
— Depressão severa, ansiedade generalizada e tendências suicidas. É, mãe… vai ter que medicar.
De um lado, meus pais batalhando contra mim mesma pela minha própria vida. Do outro, tinha o Bruno.
Aqui o amor tomou um revés inusitado. Na minha cabeça, o maior ato de gentileza que eu poderia cometer era morrer e deixar todo mundo em paz. Foi assim até que os remédios começaram a fazer efeito e, a partir disso, muita coisa virou só um borrão.
Os dias pareciam um eterno mais do mesmo… até que, bem ali, debaixo dos meus olhos, um menininho começou a crescer. Era curioso e novo ver aquele rostinho banguela se revelar, pouco a pouco.
Foi desse jeitinho, um dia depois do outro, sem pressa, que meu irmão salvou a minha vida.
Bruno era fascinante. Nossos quase 12 anos de diferença de idade me davam uma vantagem muito doce: era muito curioso vê-lo crescer de pertinho. Eu começava o dia pensando: “É hoje, de hoje eu não passo”, mas aí Bruno fazia alguma graça, o dia passava, já era hora de dormir.
O que começou com um “É hoje”… acabou virando “Só mais hoje”.
Só mais hoje eu vou viver.
Só mais hoje eu vou brincar com ele.
Só mais hoje, afinal, nós temos um desenho pra terminar.
E, então, os “só mais hoje” viraram planos para o futuro. A morte saiu de perspectiva e o amor tomou outro significado.
Foi meu irmão quem me ensinou que vale muito mais a pena viver por aquilo que amamos.
Bruno começou a falar. Um dia, perguntei qual era o meu nome e ele prontamente respondeu:
— Benda.
Dei risada.
— Pra você, é Tata.
Respondi deslizando a ponta do dedo pelo narizinho dele — exatamente como faço com a minha filha hoje em dia. E, desde então, tem alguém no mundo que só me chama de Tata.
Bruno cresceu e nossa cumplicidade cresceu junto.
Tem algo de sagrado no amor de irmãos: só um irmão é capaz de amar o outro sem absolutamente nenhuma expectativa. Amor de pai e mãe não pode — e não deve — ser livre assim. Amor de filho também não consegue ser isento.
Só o amor de irmão tem esse poder de acolher, em essência, a alma do outro. Não queremos nada em troca; apenas gostamos de estar na companhia um do outro. Eu, por exemplo, acho que respiro até mais leve quando tenho Bruno comigo.
Ele não se lembra de nada do que escrevi aqui, mas eu me lembro com exatidão. Me lembro por saudosismo, me lembro por amor.
Me lembro sempre que vem um elogio.
Veja só: Bruno é bailarino, completamente apaixonado por ballet clássico. A piada de que meus pais tiveram dois filhos completamente preocupados com cultura em vez de dinheiro é recorrente. Mas, voltando, a frequência de elogios que eu e meus pais recebemos em nome dele é alta:
“Como dança bonito!”
“Que menino educado!”
“Que menino humilde!”
“Que menino esforçado!”
E é verdade, todos eles estão certos. Mas a doçura e a inocência da alma dele… só nós conhecemos. Bruno sempre foi assim, um pouco mais humano do que todo mundo que eu conheço.
Este ano fez um ano que meu melhor amigo, meu caçula, foi morar em outra cidade. E, tendo uma pequena de pouco mais de um ano, é impossível não traçar paralelos — principalmente quando ela lembra tanto o tio. Até o umbigo é igual ao dele.
Mas o universo tem mesmo seus artifícios.
Este ano, Bruno também fez 18. Está um moço. Cresceu lindamente, virou um homem do qual me orgulho muito. Hoje dividimos os pais, os chinelos, as meias, alguns moletons, taças de vinho, neurônios e a vontade de jogar tudo pro alto.
Mas, às vezes, sinto falta de uma época mais simples.
Esses dias choveu, e eu pude voltar no tempo um pouco.
— Olha, olha, olha! — disse minha bebezinha, me puxando pela mão até o vidro.
Está aprendendo a falar.
— Você viu, filha?! — respondi, ainda segurando sua mãozinha enquanto abaixava a cabeça para olhar nos seus olhos.
Mas, por alguns minutos, tudo que vi foi um menino de pele parda e cabelo preto como carvão. E embarquei numa cena muito parecida, mas que aconteceu muitos anos atrás.
— Olha, Tata, tá suvendo.
E eu gargalhei enquanto me abaixava para ficar na altura dos seus olhos de jabuticaba.
— É chuva, Bruno. Com CH.
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E você, tem irmãos? Não importa se são de sangue ou escolhidos, quero saber como marcaram a sua história!
Obrigada mãe, obrigada pai. Pelo Bruno, por nunca terem desistido de mim mesmo quando eu desisti e por tantas coisas que nunca caberão em palavras.
Quatro da tarde e você me faz chorar… Que sorte a minha ter o Bruno e você na minha vida. É tão bom acompanhar vocês crescendo, como irmãos e como artistas 💜
Minha irmã e eu temos 11 anos de diferença. Crescer e se tornar adulta, acompanhando ela descobrindo cada vez mais um pedacinho do mundo, não tem preço!! Adorei seu texto, sou sua nova subscrita❤️